Afinal, quem criou a Bossa Nova?
Paulo Roberto Elias
dezembro 15, 2019
Texto de 10 de maio de 2015, originariamente publicado no site Websinsider, com pequenas modificações, e que discute aspectos ainda pertinentes do movimento bossa novista.
A Bossa Nova é um tema recorrente nesta coluna e, imagino eu, no pensamento das pessoas que viveram o auge deste estilo de música ainda na adolescência. Mas, cada um tem o seu motivo pessoal para ser saudosista. O meu é uma mistura de tentativa de resgate da memória musical, junto com uma indignação sobre impropriedades históricas e com a intolerância cultural sobreposta neste gênero de música.
Muitos tipos de música acabam se tornando um modismo passageiro, mesmo que se levem alguns anos para que elas desapareçam por completo. O que vem depois é um revival ocasional ou reedições de gravações da época, consumidas por antigos fãs. A preservação da memória, entretanto, independe da preferência de cada um e é intrinsicamente importante, até mesmo para o que foi um dia chulo ou de mau gosto.
Para mim, a Bossa Nova ainda é um mistério, com neblinas ocasionalmente dissipadas. Quando eu tinha contato por e-mail quase diário com o crítico e expert em jazz José Domingos Raffaelli, o jornalista que bateu de frente com o terrível José Ramos Tinhorão nas redações dos jornais, ele me contou com detalhes como a Bossa Nova surgiu nas reuniões do Clube Sinatra-Farney, da Rua Moura Brito na Tijuca.
Anos após, eu leio no livro “Chega de Saudade”, do jornalista Ruy Castro o expurgo deste mesmo local como o berço do gênero. Se o Clube não foi “o” berço, certamente foi um dos mais proeminentes. Negar a importância do mesmo na criação da Bossa Nova, como fez Ruy Castro, me parece uma atitude um tanto ou quanto temerária.
O problema é que o Brasil no geral é um país sem memória e a que existe gravada longe do acesso mais banal pela Internet. Por conta disso eu, apesar de burro velho, não seria capaz, por exemplo, de dizer com absoluta certeza quem de fato criou a Bossa Nova. E acrescento: todos aqueles que um dia tentaram explicar o movimento acabaram mencionando fatos que poderiam perfeitamente ser considerados “equivocados” ou de interpretação pessoal de alguma coisa que não pode ser conferida historicamente.
As versões históricas que nunca bateram
Vou dar o exemplo do Aloysio de Oliveira, que gravou na sua gravadora Elenco um lado de um elepê contendo uma narrativa de como a Bossa Nova teria surgido. Ele conta com absoluta confiança que era uma maneira que se achou na época de “cantar música baixinho, para não incomodar os vizinhos”.
Interpretando ao pé da letra, a Bossa Nova seria uma espécie de música de apartamento, preferencialmente nos da zona sul do Rio de Janeiro, onde a exploração imobiliária tinha atingido o pico no final da década de 1950 e a densidade demográfica era alta. E aí começa de novo aquela retórica, a qual, por favor me desculpem os leitores, não me convence de forma alguma, quando se afirma categoricamente que foi no apartamento da cantora Nara Leão que o gênero teria surgido e/ou avançado. A cantora foi depois declarada como “musa” do movimento.
E o que dizer da “influência do Jazz”??? Até hoje alguns afirmam que parte dos primeiros compositores do movimento não gostava da intromissão de arranjos jazzísticos nas composições dos primeiros bossa-novistas. Alguns até afirmam que quando Carlos Lyra compôs “Influência do Jazz” ele estaria protestando contra esta “intromissão”.
Se de fato este protesto do compositor aconteceu deve ter dado errado, não só naquela época como em anos subsequentes. Uma ironia do destino, se quiserem, por conta do enorme sucesso que a música teve no exterior. Quem ouve a composição de Carlos Lyra sem prejuízo deste tipo de interpretação irá notar um conteúdo fortemente influenciado pela formação jazzística e latino americana, fazendo dela um mar de contradições neste particular.
A perpetuação da Bossa Nova na cabeça dos músicos americanos
E aconteceu que em 2005, eu ainda estava no fórum do Home Theater Talk, falando ocasionalmente sobre Bossa Nova, quando conheci um usuário com o “screen name” de Woodman (o nome verdadeiro é Woody Isbell). Logo no início das nossas conversas cibernéticas ele me conta que o seu filho mais novo Mark era louco por música brasileira e pelo Rio de Janeiro. Woodman tinha se aposentado como engenheiro eletrônico na área de televisão, mas antes disso ele e a mulher eram músicos profissionais. Mark Isbell havia gravado um disco independente, que ele fez questão de mandar uma cópia para a minha casa.
O título logo de cara revelava aquilo que o nosso bom Mark vinha procurar no Rio: Jazz e Bossa Nova! Embora o pai tenha pedido meus dados de contato Mark e eu nunca nos encontramos. Mas, tempos depois, um amigo meu diz que o viu tocando naqueles encontros de música da loja de discos Modern Sound, que ficava ali em Copacabana. Se eu não tivesse parado de frequentar a loja, provavelmente o teria visto por lá também.
O Mark vinha muito ao Rio, para tocar com gente conhecida, e isto acabou resultando em um segundo disco, gravado por aqui, com o título “Samba Copacabana”. Se a “influência do jazz” não foi considerada boa para a cultura do samba, ela certamente o foi para um monte de gente que se apaixonou pela música da Bossa Nova.
A prática de tocar Jazz no Rio de Janeiro existiu décadas antes da Bossa Nova tomar forma, até mesmo por músicos do samba tradicional e principalmente dos adeptos do chorinho. Nunca houve necessidade de se mesclar uma música com a outra, era suficiente acrescentar compassos e improvisar. Afinal, Jazz e Samba tiveram raízes africanas e ambos são fruto da influência da música erudita europeia. O que então existe de estranho nisso?
Eu pessoalmente teria engolido sem maiores constrangimentos esta versão da criação da Bossa Nova como nova forma de “cantar baixinho”, não fosse o fato de ter ouvido ainda menino discos 78 rpm com os vocais de Mário Reis. Esses vocais estão espalhados por aí na Internet, de forma que o leitor poderá julgar por si próprio. Na música popular brasileira, “cantar baixinho” nunca foi novidade, mesmo no chamado samba tradicional ou no maxixe.
Cantar baixo deu aos músicos populares e depois da Bossa Nova a chance de incorporar artistas de pequena extensão vocal, e colocar suas vozes junto com as harmonias inovadoras que o movimento bossa novista trouxe à baila, distanciando-se radicalmente do samba ortodoxo.
Afinal, quem criou a Bossa Nova?
A cada dia que se passa eu tenho a sensação de que nunca vou conseguir uma resposta convincente a esta pergunta. É possível para nós que somos leigos em teoria musical apostar que um conjunto de fatores levou ao surgimento do gênero.
Pode ter sido fruto dos encontros nas casas e apartamentos, por exemplo, e aí não se pode descartar nenhum lugar específico, dos encontros dos músicos mais jovens, na busca de novas harmonias e principalmente de uma maneira nova de tocar o samba.
Teóricos falam na criação de um “samba sincopado”, ou seja, uma quebra ou rompimento da estrutura rítmica tradicional do Samba, neste caso de maneira a permitir uma nova inflexão da forma de tocar ou vocalizar, acrescentando cadência e arranjos bem mais sofisticados. João Gilberto foi um dos que fez isso, ao “pré-frasear” músicas conhecidas. Quando Tom e Vinícius escreveram “Chega de Saudade” eles notoriamente estavam se referindo a esta nova separação da estrutura do samba tradicional.
Mas, o rompimento com o tradicional não iria agradar a muita gente. E como em um país onde o preconceito é muito mal disfarçado, seus críticos usaram as primeiras composições da Bossa Nova para rotular o que eles chamavam maldosamente de “samba de branco”. É estranho, porque Johnny Alf, um dos compositores que mais influenciou a Bossa Nova, não era “branco”. E se fosse, a gente se pergunta, que diabo a cor da pele ou raça tem de restrição ao processo criativo? O Jazz foi criado por negros e tocado por brancos que se tornaram mestres inovadores, como Bix Beiderbeck.
A origem do conceito
Bossa é uma palavra ou uma gíria, se quiserem, que originariamente se refere a uma maneira habilidosa de fazer alguma coisa, e ela aparece décadas atrás no vernáculo musical. Então, “Bossa Nova” seria uma nova maneira de se fazer música, não apenas do Samba, mas do samba-canção e mais um punhado de estruturas rítmicas alienígenas.
E como todo gênero novo e eclético, poderia assim ser tocada de forma lenta e lírica ou então rápida, mais “quente”, digamos assim. Um exemplo desta última vertente são os primeiros discos do Tamba Trio, notadamente “Avanço”. O título em si já mostra que ali não se está mais tocando a música entendida como “samba”, mas um “samba novo”, expressão esta que serviu de título para o disco que o baterista Édison Machado fez para a CBS, e que é cheio de improvisações jazzísticas.
Muito deste Jazz da época foi tocado por músicos experimentados e que trabalhavam no rádio e na televisão tocando desta maneira, bem antes da Bossa Nova começar. Mas, ali se vislumbrava uma união notável de dois gêneros de música, o Jazz e o Samba, sem que aparentemente ninguém tivesse feito esta união somente porque ambos os gêneros tivessem raízes em países da África. O Jazz sempre foi uma música de improvisação de solistas e a Bossa Nova usou elementos do Jazz, de maneira a aumentar o escopo da sua criatividade.
Aliás, este aspecto diz respeito aos teóricos e estudiosos. Na prática, a entrada do Jazz na Bossa Nova sem dúvida alguma é a consequência da modificação da estrutura até então vigente, quando novos compassos foram introduzidos, e novas combinações harmônicas criadas, que propiciaram ou induziram a improvisação jazzística.
Tanto isso é verdade, que os primeiros músicos de jazz norte-americanos que aqui aportaram, lá pelos idos de 1960/1961, ouviram o Jazz nas composições de Bossa Nova tocado pelos músicos locais de uma forma completamente diferente das originais. A resposta a este apelo foi imediata! Porque não há nada que possa mais comunicar pessoas de povos diferentes do que a linguagem musical. E se não fosse por isso, me arrisco a dizer que a Bossa Nova, tal como a conhecemos no seu início, teria tido morte prematura, tal o preconceito que contra ela foi investido por Tinhorão e companhia. Se estes senhores não tivessem este tipo de atitude e analisassem o que de fato estava acontecendo de bom nas noites da zona sul naquele momento, teriam percebido que a Bossa Nova influenciou o Jazz e não o contrário!
Todos os músicos de Jazz que eu ouvi e que ouço até hoje viram na Bossa Nova uma fonte de inspiração para novas interpretações não só das músicas do movimento como as composições clássicas do repertório norte-americano. Isto me prova conclusivamente que sem a Bossa Nova e a inspiração dela advinda os músicos de Jazz não teriam mudado a sua maneira de tocar.
Influências musicais existem no mundo todo
A maior prova da burrice dos exegetas que vociferaram contra a Bossa Nova é a ignorância proposital da influência que alguns gêneros de música tiveram em outros. Aqui mesmo no Brasil existiu o chamado “Tango Brasileiro”, visto nas composições de Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga. No entanto, a obra desses notáveis e inovadores compositores se tornou a base mais bonita do Chorinho. Assim como o Samba, que teve influência do Maxixe, que por seu lado teve influência da música europeia.
A música é perfeitamente capaz de atravessar fronteiras. Esta travessia aconteceu várias vezes na música erudita europeia e aqui no Brasil com o próprio samba, que criado nos terreiros da Bahia, só foi tomar a sua forma definitiva nos morros do Rio de Janeiro.
O que eu ouvia ainda menino como “Samba-Canção” mais parecia bolero. E é interessante notar que na interpretação magnífica de Elis Regina da música Dois Pra Lá, Dois Pra Cá, da autoria de Aldir Blanc e João Bosco, a finalização ocorre com estrofes do bolero “La Puerta”, que, aliás, se encaixam muito bem na estrutura da interpretação da música.
Do que eu me lembro da minha infância a música cubana teve fortíssima influência na música popular brasileira, e ninguém reclamava desta ingerência. Pelo contrário, a influência se via refletida nos salões de baile dos clubes e era de forte apelo popular!
A influência musical é saudável. Ela claramente parte do subconsciente do compositor, da sua formação musical e da sua identificação com os diversos gêneros de música que o precederam. A Tom Jobim, por exemplo, ícone maior da Bossa Nova mais romântica, se atribui influências de Debussy e Chopin. Luiz Eça estudou piano clássico e foi o gênio criador dos arranjos do Tamba Trio. Quem poderá afirmar que tais influências são nefastas ou que tendem a negar a nacionalidade dos compositores e artistas?
Eu sonho com o dia em que os primeiros passos do movimento da Bossa Nova deixem de sair da obscuridade, e que a participação do impulso criador dos jovens das décadas de 50 e 60 não tenha a tendência de achar que um ou outro deles foi quem criou o gênero. A força criadora pode eventualmente ter uma só origem, mas raramente isto acontece. E as disputas literárias de quem foi o principal criador se torna um discurso inútil e pouco esclarecedor.
E finalmente, se formos radicalizar e insistir na retórica contra “influências” é sempre recomendável jamais esquecer que foi a própria Bossa Nova quem influenciou a música romântica deste planeta para sempre. E a prova disso se pode ouvir nas modernas trilhas de cinema e nas composições feitas por estrangeiros, espalhadas pelo mundo todo! Outrolado.